A melhor lição

15.10.11


"A educação pelo medo deforma a alma."
Coelho Neto



Há uns cinco anos, vi na rua uma ex-professora do primário. Não me fez bem vê-la. Pensei em voltar e fazer uns belos desaforos por ela ter sido tão rígida comigo na escola. Ela não era assim com todos, principalmente com os que tinham mais dinheiro. Não ia ganhar nada com isso, mas elegia os alunos de famílias tradicionais seus queridinhos.

Eu não era uma estudante exemplar naquele tempo, mas também não era bagunceira e sempre a respeitei. Mesmo assim, implicava comigo, eu achava inclusive que gratuitamente. Dependendo de quem fizesse algo errado, ela amenizava, fingia não ver, passava a mão na cabeça. Se fosse eu, gritava na frente de todos. Até hoje, não sei qual era o problema, afinal, uma criança de nove anos que nunca faltou com respeito, não merecia ser tratada com tanta severidade.

No final do recreio, militarmente, cada turma formava uma fila e tomava distância. Houve um episódio em que uma aluna de outra turma, que implicava comigo, chutou para meu lado uma casca de banana. Como não era minha, chutei de volta. A professora dela só viu o que eu fiz e não o que sua aluna havia feito e muito menos tinha conhecimento das perseguições dela, uma menina maior e bem mais gorda que poderia com um simples tapa me derrubar. Na mesma semana, durante uma prova, uma das queridinhas de minha professora ficava olhando para meu teste. Falei que não ia passar cola. Não sei o que ela entendeu. Foi correndo fazer queixa. Do alto do tablado, a professora cruzou os braços, fechou a cara, olhou-me de cima e chamou minha atenção na frente de todos: "o que está acontecendo com você? No recreio, chutou uma casca de banana para a outra fila..." E continuou falando um monte de coisas das quais já não me recordo, somente dessas palavras e de que cada vez que eu abria a boca para me defender, ela falava mais alto. Não pude contar minha versão, ela simplesmente não deixou.

"O que está acontecendo com você?" Como se eu já fosse uma adulta problemática, um estorvo, "o que está acontecendo com você?" Será que o problema não era ela, aquela que privilegiava alguns alunos e implicava com outros? Ficava até com raiva dos queridinhos, mas eles não tinham culpa.

Ontem eu a encontrei novamente e fui falar com ela. Minha surpresa foi que, trabalhando no mesmo lugar, 23 anos depois e com muitos outros alunos, ela ainda se lembrava de mim. Disse inclusive que tinha uma foto, dessas em que no colégio tiramos com toda a turma. Mas, ela não deve se lembrar de como me tratava. Eu comentei que ela era muito brava. Ela disse que continua sendo.

Percebi que de estatura estou mais alta apesar de eu ser baixinha. Agora eu a olho de cima. A mágoa ainda existe, mas diminuiu, não eram necessários os desaforos que gostaria de ter feito cinco anos atrás. Seria me rebaixar ao mesmo nível. Adiantou privilegiar os mais ricos? Os pais deles deram algum benefício? Não, continua lecionando no mesmo lugar. Falei para ela que também me tornei professora. Só não falei que um dos motivos pelos quais me fez escolher essa profissão foram ela e seus semelhantes autoritários. Exatamente para não fazer com meus alunos o que ela fez comigo.  E serve para me lembrar de que cada vez que perder a paciência, não devo gritar com eles porque estarei sendo como ela, algo que não quero. Escolhi a sala de aula por achar que podemos lecionar de uma forma diferente, sem rebaixar e humilhar os alunos. Engoli tantas injustiças naquela época que agora já não me calo mais. Foi um aprendizado às avessas.

Um comentário:

Eugenio Hoch Junior disse...

Acho que você deveria dar um chute na canela desta tia e sair correndo. Seus textos são sempre muito bem escritos. Sempre. Beijos